O senso comum (commonsense) na teoria constitucional diz que os tratados não devem ser referendados. Era isso que estava na versão original da Constituição Portuguesa. A própria Constituição Portuguesa nunca foi referendada, nem a americana, nem nenhuma que eu conheça. Porquê? Pelas mesmas razões porque não foi referendado o Código Civil, nem o Código Penal, nem o Código de Processo Penal, apesar de terem uma influência mais directa e mais relevante na vida e na liberdade das pessoas comuns. Porque são textos, longos, complexos e muito vulneráveis à demagogia.
Aqui entronca uma questão que é crucial: a democracia deve ser directa ou representativa? A democracia directa resvala invariavelmente e inevitavelmente para a demagogia. Na democracia representativa, os cidadãos elegem deputados que, por sua vez, votam as leis, em nome dos eleitores. Assenta no princípio – óbvio – de que os eleitos são mais esclarecidos e menos vulneráveis à demagogia do que os eleitores.
Foi por isso que os constituintes americanos, quando redigiram a constituição dos USA, o fizeram numa casa fechada, com portas e janelas trancadas, sem poderem entrar nem sair, nem contactar com quer que fosse de fora. Esta prática foi sustentada numa máxima que ficou célebre: não substituir um tirano a seis mil milhas de distância por seis milhões de tiranos a algumas milhas de distância. A ideia foi a de evitar a pressão da opinião pública. Foi assim que surgiu a constituição mais bem feita e mais duradoura de sempre.
É por isto que sempre fui contrário aos referendos em geral e ao referendo do Tratado Constitucional da EU, primeiro, e ao do Tratado de Lisboa, depois. Porque a demagogia dá cabo deles. Não me surpreenderia que um referendo sobre o Tratado de Lisboa, também não passasse em Portugal.
Podem questionar-me se eu acho que o povo é estúpido. E eu respondo que não é suficientemente preparado para compreender, nem o Trado Constitucional da EU, nem o Tratado de Lisboa, nem a própria Constituição da República Portuguesa. Num referendo, não passaria sequer a lei do Orçamento Geral do Estado.
Indo directo ao assunto:
Quais foram as razões do voto contra irlandês. Na campanha do não foram principais os argumentos seguintes:
- haveria harmonização fiscal com o aumento dos impostos na Irlanda, que são hoje os mais baixos da Europa;
- haveria liberalização do aborto;
- acabaria a neutralidade da Irlanda.
Vendo um por um:
- a Irlanda tem os impostos mais baixos da Europa porque recebe dinheiros pagos com os impostos dos demais cidadãos da Europa;
- nada no Tratado de Lisboa implica a liberalização do aborto na Irlanda, e as irlandesas sempre que querem abortar dão um pulinho até Inglaterra, ali ao lado;
- também nada no Tratado de Lisboa implica o fim da neutralidade e da desmilitarização da Irlanda.
Mas, o que mais me impressionou no referendo irlandês foi a enorme abstenção. 46 virgula tal por cento não se deram ao trabalho de votar, nem quiseram saber.
Isto significa que a maioria dos irlandeses não querem saber da Europa. Interessa-lhes que lhes pague os impostos, os defenda em caso de necessidade e que lhes subsidie a economia. Quando eram miseráveis, interessou-lhes a Europa; agora que estão ricos, já não querem saber de mais ninguém.
Os irlandeses têm todo o direito de tomar esta atitude. É com eles.
Mas não podem pretender que os outros milhões de europeus, aceitem o seu veto, paguem os seus impostos, subsidiem a sua economia e os defendam em caso de ser preciso.
É anti-democrático e insuportável que mais ou menos 700 mil irlandeses imponham a sua vontade a mais ou menos 480 milhões de europeus. Não pode ser!
A solução é só uma: não há que obrigar os irlandeses a coisa nenhuma, mas não há que parar o processo de integração europeia, se necessário, sem os irlandeses. Se estão mal, mudem-se.
Em linguagem que os irlandeses entendem:
Come along or get out of the way!
domingo, junho 15
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